Assistir a uma partida de futebol é
uma coisa. Jogar uma partida de
futebol é outra.
Ninguém, mas
ninguém mesmo, nos meus tempos de
infância e juventude (sou
da velha
guarda)
jamais
preferiu assistir a jogar. Ver
futebol é uma coisa relativamente
nova, que cresce na proporção exata
em que não se pode mais jogar. Além
do mais, ver sem jogar resulta numa
pobreza crítica em relação ao
próprio futebol. Quem não joga não
sabe apreciar. Não pode sequer
entender a dificuldade, a beleza, a
sofisticação de um lance ou de uma
partida.
O futebol brasileiro de alguns anos
não era mais clássico e requintado
porque se corria menos ou se tinha
menos preparo físico, mas porque
isso era uma exigência de um público
que entendia o jogo de uma maneira
mais elegante. Isso porque todo
mundo jogava. Os olhos de quem via
se tornavam mais agudos e se cobrava
mais do jogador profissional,
especialmente de um grande clube.
“Se eu faço, por que ele não faz ?”.
Era
assim que um jogador de várzea comum
raciocinava quando observava uma
falha ou um erro num profissional. E
no domingo de manhã, no seu time de
várzea, ele caprichava e “fazia”
aquilo que, no mesmo domingo à
tarde, ia exigir dos profissionais,
aos berros, lá do alto da
arquibancada do estadio.
As cidades
eram mais civilizadas, é verdade.
Mas não era apenas por isso que as
torcidas eram mais pacíficas e menos
selvagens. Era também por causa da
várzea e também, de novo, porque
todo mundo jogava. O talento, mesmo
do adversário, era reconhecido e
além disso, nos domingos à tarde
quando os torcedores se dirigiam ao
estadio, a maioria já havia gasto
suas próprias energias de manhã
defendendo seu time de várzea. A
disposição para brigar era bem
menor.
Jogava-se em qualquer campo. Era só
colocar duas traves e arranjar vinte
e duas camisas. Onze para o segundo
quadro, onze para o primeiro quadro,
como se dizia então. Desníveis,
buracos, sulcos, crateras, falta de
grama e demais acidentes geográficos
não importavam muito. Temporais,
tempestades, frio e garoa, também
não. Bastava o espaço, qualquer
espaço.
A
barbárie da especulação imobiliária,
o descaso de muitas administrações,
algumas apenas medíocres, outras
francamente criminosas, destruíram o
futebol de várzea impiedosamente,
como destruíram todas as
manifestações não imediatamente
lucrativas que havia nesta cidade. O
fato de que a várzea se constituía
na única possibilidade de praticar
esporte para uma imensa parcela da
população não tinha nenhuma
importância para esses “administradores”.
O que resta hoje desse futebol
desorganizado e popular são alguns
campos preservados à força, com a
imobilidade de museus, aparentando
uma falsa humanidade que a cidade
perdeu para sempre. A várzea é um
fenômeno da cidade que passou, um
fantasma que pode interessar a
estudantes e pesquisadores.
Mas eu
acho que por mais que se dediquem
jamais vão conseguir recapturar o
clima daqueles domingos quando
velhos caminhões cruzavam a cidade
inteira carregando jogadores para
batalhas incertas pelos campos da
cidade. Os jogadores passavam
batucando, amontoados perigosamente
na carroceria dos caminhões. No fim
da tarde passavam de volta, alguns
caminhões mais silenciosos, outros
mais barulhentos ainda do que quando
foram, batucando mais forte,
comemorando a vitória. O som desses
caminhões foi durante muitos anos o
som dos domingos e eu nunca vou
esquecê-los.
Como não vou esquecer os nomes de
alguns daqueles times. Em Belo
Horizonte, tínhamos o Tremedal,
Rosário, América Suburbano,
Paulistano, Cruzeiro do Sul e tantos
outros. Em Contagem/MG, existia o
Santos, o Compax, o Mineirinho, o
Estudiantes e tantos outros que hoje
povoam somente as minhas lembranças.
No
lugar dos campos desses times hoje
erguem-se edifícios com enormes
grades protegendo seus moradores.
E
o futebol, que antes era na rua,
agora acontece na sala de visitas,
pela televisão.