Goleiro
ignora falta de uma perna e
segura artilheiros na várzea
Está
vendo a foto aí em cima?
Sim, esse goleiro não tem uma
perna. E não tem vergonha
disso. "A
deficiência está na cabeça",
avisa Alexandre Toledo. Aos 37
anos, ele convive com a falta
da perna esquerda desde 1996.
Em 16 anos, se tornou uma
verdadeira lenda dos campos de
várzea de São Paulo.
No
início do ano passado, quando
o UOL Esporte
começou a buscar, com mais
intensidade, 'causos'
diferentes no futebol amador,
a história do goleiro sem
perna apareceu. Parecia
folclore. "Na
Lapa existe um goleiro sem
perna", dizia
um. "Eu
vi o cara pegando pênalti",
avisava
o outro. Mas onde encontrá-lo?
Ninguém parecia saber.
"Um
dia, estava esperando a hora
de entrar em campo e um amigo
meu me disse: 'olha o goleirão'.
Não vi nada demais. Mas
quando a bola estava indo em
direção ao gol, percebi o
motivo do espanto. Ele não
tinha uma perna",
disse o empresário André
Kiss, que jogou futebol em uma
universidade nos EUA e hoje
corre atrás da bola nos terrões
da cidade.
Há
alguns dias, o próprio
Alexandre se apresentou.
Mandou um e-mail para o Papo
de Várzea, o blog de
futebol amador do UOL,
com um vídeo e o assunto: "Deficiente
defende um pênalti".
Após uma troca rápida de
mensagens, admitiu que ele era
o goleiro. E que queria contar
a sua história.
No
último sábado, a reportagem
foi até um dos jogos de sua
equipe, o Moleque Travesso do
Rio Pequeno. O rival, o Jardim
Wilson, venceu por 5 a 4. Não
foi culpa de Alexandre. Ele
tomou cinco gols, três deles
enquanto seu time estava com
um a menos. Quando a partida
começou, com quase 40 minutos
de atraso, ao menos quatro
jogadores do Moleque Travesso
ainda não tinha chegado.
Com
um a mais, o Jardim Wilson
explorou justamente a maior
dificuldade de Alexandre: a saída
de bola. Por duas vezes, os
atacantes aproveitaram lançamentos
longos e tocaram na saída do
goleirão. Quem não está
acostumado, certamente, achou
que foi culpa do goleiro e de
sua deficiência. Quem estava
em campo garante que não foi.
"Pode
até parecer falha, mas dentro
de campo, você consegue ver
que ele tem qualidade. Ele sai
pulando, todo mundo acha que
ele é lento, mas é muito rápido.
E ainda por cima se posiciona
muito bem. Fecha o ângulo
direitinho",
diz Alexandre Pereira Jorge, o
Tiguês, lateral direito do
time rival.
As
defesas de Alexandre comprovam
isso. Em uma delas, pegou uma
bola a queima roupa, com o
atacante chutando cruzado.
Usou a perna. Em outra, uma
cabeçada dentro da área, fez
uma bela ponte para defender
de mão trocada. Nas duas
ocasiões, executou movimentos
que poucos goleiros na várzea
conseguem.
"Quando
começa o jogo, você ouve que
o atacante vai chutar no lado
em que falta a perna. Ou que
é só chutar que a bola
entra. Mas não é assim. É
claro que eu tenho
dificuldades. E a saída de
bola, como o jogo mostrou, é
a maior delas. Eu saio do gol
pulando, não correndo. E é
muito mais difícil para
chegar no atacante. Mas nas
outras jogadas eu consigo me
virar muito bem",
analisa Alexandre.
Muito
bem, mesmo. Imagine passar uma
hora, uma hora e meia, em um pé
só. Para quem tem duas
pernas, é uma tarefa quase
impossível. Imagine jogar
bola, então... Quando
Alexandre teve de amputar a
perna, também pensava assim.
Sofreu o acidente em 1996.
Estava de moto e colidiu com
um carro que vinha na contramão.
"Na hora, achei que só tinha quebrado a perna. Senti o
inchaço começando, mas achei
que iria colocar o gesso e em
dois meses iria voltar".
Estava errado.
As
fraturas na perna esquerda
eram numerosas e ele passou
meses em cima da cama,
dependendo dos outros para
fazer tudo. Após um ano
tentando a recuperação, os médicos
desistiram. Alexandre tinha,
então, duas opções: manter
a perna, e carregar um peso
morto, ou amputar e viver uma
vida "quase normal"
– aspas do próprio. A
carreira no futebol – ele
era goleiro de um time
profissional de divisões
inferiores em Minas Gerais –
já estava acabada. A vida "normal",
porém, estava começando.
"Quando
chegou a hora de escolher, meu
pai disse que apoiaria minha
decisão. Mas lembrou que ele
e minha mãe não estariam ao
meu lado para sempre. Não
adiantava abaixar a cabeça e
ficar chorando. Foi um direto
no queixo que ele me deu. E
tenho certeza que é graças a
isso que sou uma pessoa
realizada hoje. Tudo o que eu
conquistei até hoje aconteceu
depois do acidente. Tenho uma
mulher maravilhosa que conheci
já após o acidente, um filho
que eu amo, meu emprego
(trabalha com logística
internacional) que adoro,
comprei a minha casa".
Em
campo, essa alegria e confiança
aparecem. A volta aconteceu na
praia. Ele e os amigos estavam
em uma casa no litoral, nas
folgas de fim de ano, e
apareceu o convite para uma
pelada. Ele levantou do sofá
e aceitou.
"Todo mundo olhou com espanto. Mas como era na areia, eu
fui sem medo de me machucar.
Foi lá que percebi que não
estava morto para o
futebol".
Já
são 16 anos jogando com uma
perna só. E jogando bem. Os
companheiros de time confiam
em Alexandre e seus zagueiros
jogam sem pensar duas vezes em
proteger o gol. E os rivais o
tratam com o respeito que um
grande goleiro merece – com
ou sem deficiência.
Então,
se um dia você estiver
passando por um campo de terra
e, embaixo das traves,
perceber que está faltando
alguma coisa no goleirão,
pode ficar para assistir.