Futebol de várzea vira fonte de
renda para campeões do Mundial e da
Libertadores: "A madeira canta"
Alê, ex-São Paulo, e Jailson,
ex-Palmeiras, são alguns dos que
chegam a faturar até R$ 5 mil por
jogo em torneios amadores no estado
de São Paulo; veja outros famosos
que mudaram carreira
O
que um ex-jogador campeão mundial
pelo São
Paulo,
um ex-volante que marcou época no Corinthians ao
lado de Ronaldo Fenômeno e um
ex-goleiro que há dois anos era
bicampeão da Conmebol Libertadores
no Palmeiras têm
em comum além da aposentadoria?
Alê, Cristian e Jailson trilharam o
mesmo caminho após pendurarem as
chuteiras profissionalmente. Agora,
eles as calçam em outros campos, no
futebol de várzea. Alguns chegam a
faturar até R$ 5 mil por partida.
Outros jogam de graça, por amor.
O que antes era apenas uma forma de
diversão na aposentadoria, agora se
transformou em um novo mercado.
Jogar na várzea virou fonte de
renda, uma nova carreira. Tanto para
ex-jogadores como para aqueles que
continuam atuando como
profissionais.
De olho nessa tendência, o ge acompanhou
algumas partidas na várzea e visitou
alguns campos em busca de histórias
naquele que por alguns é chamado de
futebol amador ou semiprofissional.
E as histórias não se resumem apenas
aos três ex-jogadores de
Corinthians, Palmeiras e São Paulo.
Fomos até Sorocaba, cidade do
interior de São Paulo, para mostrar
o que é o Enquadro's, time que reúne
muitos ex-medalhões famosos, entre
eles jogadores que também passaram
por Atlético-MG, Flamengo,
futebol chinês e até ucraniano.
A várzea tem ganhado cada vez mais
visibilidade. Não à toa possui sua
versão da Liga dos Campeões. Em São
Paulo, um campeonato apelidado com o
nome do maior torneio de futebol de
clubes do mundo se prepara para uma
final épica no Allianz Parque, arena
do Palmeiras, em 2 de julho.
Várzea, não! É semiprofissional...
O relógio marcava 13h58 no dia 27 de
maio de 2023. Alguns quilômetros de
uma estrada vicinal às margens da
rodovia Castello Branco, uma das
mais importantes do Brasil, levam
até o Campo do Jair. Nessa
propriedade particular, do homem que
leva o nome do complexo, quase mil
pessoas chegam aos poucos para a
estreia do Enquadro's na categoria
veterano do futebol amador de
Sorocaba.
Fundado em 2010 por um grupo de
amigos, o Enquadro's deixou a
terceira e última divisão do futebol
amador local para ser protagonista
na elite em apenas quatro anos.
É considerado o time a ser batido
entre os mais de 200 clubes
registrados na várzea de Sorocaba,
que movimenta na economia local algo
em torno de R$ 20 milhões e leva
mais de 250 mil pessoas divididas
nos seus 800 jogos ao longo do ano,
segundo números da prefeitura local.
– Temos bastante ajuda, não
conseguimos ainda ser
autofinanciáveis, ainda não
conseguimos nos sustentar. A gente
primeiro gasta, depois vai buscar o
dinheiro. Um clube profissional tem
um orçamento e dentro daquele
orçamento vai buscando montar o
time. O futebol amador é diferente,
um pouco irresponsável, primeiro a
gente gasta e depois vai atrás do
dinheiro.
– A gente vai batendo na porta e as
pessoas vão ajudando, vamos trocando
favores. Todo mundo vai ajudando um
pouquinho, não é um patrocínio, é o
"ajuda eu". Brinco que tem esse
nome. O nível dos jogadores que
estamos contratando acaba trazendo
mais gente apoiando o clube
– contou
Roni Zinkoski, representante
comercial e presidente do
Enquadro's.
Entre os vários jogadores que se
confundem com os torcedores, alguns
rostos conhecidos chamam atenção e
despertam a curiosidade de quem está
ali em busca apenas de um bom jogo
de futebol. Afinal, quem poderia
imaginar que encontraria em campo
ex-atletas que em um passado recente
estavam jogando nos principais
palcos do futebol brasileiro e
mundial.
No gramado, entre fotos com
jogadores rivais, torcedores e até o
trio de arbitragem, um goleiro
bicampeão da Libertadores pelo
Palmeiras e um volante que surgiu
como promessa sendo campeão mundial
pelo São Paulo.
Jailson e Alê, vestindo as camisa 12
e 8 do Enquadro's, encararam a
estreia na várzea de Sorocaba como
um jogo decisivo de Libertadores,
Brasileirão ou qualquer campeonato
importante que as camisas pesadas
que vestiram sempre exigiram deles.
– Várzea? Aqui não tem nada de
várzea não, filho. Entrou aqui a
madeira canta, não tem essa não. O
frio na barriga ainda continua, é
isso que move –
disse
Jailson,
duas vezes campeão da Libertadores
pelo Palmeiras (2020 e 2021)
e aposentado do futebol desde o
início deste ano.
– É uma emoção difícil de explicar.
A gente já jogou no Morumbi lotado,
Maracanã lotado (...) mas aqui é um
torcida apaixonante, pessoas que
deixam de fazer qualquer coisa para
estar aqui, tiram dinheiro do bolso
–
conta
Alê, volante campeão da Libertadores
e Mundial pelo São Paulo,
em 2005, e que também anunciou a
aposentadoria neste ano.
– Eu sou de uma época que a palavra
vale muito mais que qualquer papel e
caneta, dinheiro. Todos os contatos
que ele fez conosco é na palavra,
olhou no meu olho e isso não tem
dinheiro que pague. O clima,
ambiente, você ser bem tratado e as
pessoas com sorriso no rosto para te
receber.
– Às vezes você está em clube, pode
ganhar tudo lá, milhões, mas não é
um ambiente legal. Aqui é só risada,
pode estar com a nossa família aqui
e isso não tem preço –
completou o
volante.
Na roda de oração ou no papo antes
da partida, entre os torcedores ou
com quem quer que seja a conversa, o
termo várzea ou amador é colocado em
segundo plano, quase proibido.
Com cada vez mais profissionais
envolvidos e estrutura e organização
iguais de times profissionais, eles
querem respeito, querem ser
encarados como "semiprofissionais".
– A gente chega uma hora antes, se
concentra porque tem um compromisso,
responsabilidade e representa gente
muito grande. Quando a gente fala
que é semiprofissional porque a
gente se cuida, se não fizer isso
passa vergonha.
– Os caras têm qualidade, se não nos
prepararmos vai ter gente que
atrapalha. É praticamente
profissional, pois jogadores e
clubes honram os compromissos e nos
preparamos a semana toda para
entregar tudo que a gente tem –
contou
Alê,
que defendeu mais de 20 clubes ao
longo da carreira.
– Ambiente gostoso, reúne grandes
atletas e um futebol
semiprofissional. Tem muito disso, o
ambiente é muito bom e claro que
cada um aqui representa a sua
história, mas também a de um clube
que não mede esforços para termos
condições de trabalho melhores que
muitos times por aí – disse
Corrêa, meio-campista com passagens
por Palmeiras, Atlético-MG, Flamengo
e clubes do exterior.
E a sintonia entre ex-jogadores
profissionais e a várzea parece que
deu certo para o Enquadro's, que
abriu vantagem de seis gols logo no
primeiro tempo do jogo e venceu os
Amigos de Sorocaba na estreia, por 7
a 0.
Os gols foram marcados por medalhões
com passagens por grandes clubes:
dois de Corrêa (ex-Flamengo,
Palmeiras e Atlético-MG); dois de
Dinei; um de Doriva (ex-São Bento,
RB Brasil); Wellington Bruno
(ex-Flamengo) e Eder Lima
(ex-Flamengo).
Liga dos Campeões da várzea!
Em São Paulo, a capital paulista, um
campeonato ganha cada vez mais
espaço e popularidade no futebol
amador brasileiro: a Copa Pionner.
Com 80 clubes amadores da capital e
de regiões metropolitanas, a "Liga
dos Campeões da várzea" tem ao todo
200 jogos e reúne de 10 a 15 mil
pessoas nas rodadas do fim de
semana. Ao longo dos três meses de
disputa, mais de 400 mil pessoas
acompanham os jogos. São quase 100
pessoas trabalhando na organização
do torneio, que distribui cerca de
R$ 200 mil em premiações.
– A Super Copa Pioneer ganhou esse
apelido de Liga dos Campeões da
várzea pela organização, fórmula de
disputa e seriedade da competição.
Era para ser apenas uma edição, em
comemoração ao aniversário de 35
anos do Pioneer (tradicional time da
várzea de São Paulo), mas acabou
ficando sério e estamos na sétima
edição. O Pioneer não disputa essa
copa para deixar mais transparente e
dar mais credibilidade – contou
Sérgio Pioneer, criador da
competição.
A final da competição, prevista para
2 de julho, terá um sabor especial
nesta temporada. Ou melhor, um palco
de respeito. A decisão do título
será no Allianz Parque, casa do
Palmeiras, com expectativa de
público acima de 40 mil pessoas.
Entre os clubes participantes da
Liga dos Campeões da Várzea, um
deles sonha repetir os passos do
Água Santa, atual vice-campeão
paulista, e migrar para o futebol
profissional. O Vila Izabel, com
sede em Osasco e que tem o
ex-zagueiro Domingos como grande
estrela, foi fundado em 1948 e
planeja disputar a Copa São Paulo de
Futebol Júnior no próximo ano.
– O Vila Izabel planeja ser um Água
Santa da vida, nossa grande meta é
se tornar um clube profissional.
Acho que o grande espelho para os
clubes de várzea é o Água Santa...
chegaram até uma final de Paulistão.
Na próxima temporada vamos iniciar o
projeto de disputar uma Copa São
Paulo e futuramente entrar numa
divisão do Campeonato Paulista –
contou Welinton "Tetinha",
presidente do clube.
Na atual edição da Copa Pioneer,
vários ex-jogadores atuam, como
Cristian (ex-Corinthians e que não
cobra para jogar); Domingos
(ex-Santos); Jobson e Régis
(ex-Botafogo), entre outros.
Pós-carreira para medalhões
Afinal, a várzea paga bem ou isso
não passa de um mito? A verdade é
que muitos ex-jogadores acabam tendo
uma fonte de renda importante na
transição entre o fim da carreira no
futebol e a busca por uma nova
atividade profissional.
Segundo a reportagem do ge apurou
conversando com dirigentes,
jogadores e pessoas que patrocinam
times na várzea, alguns jogadores
chegam a ganhar até R$ 5 mil por
partida, com cachê que inclui as
despesas de deslocamento,
alimentação e hospedagem.
Em média, o valor pago por partida
para um jogador de várzea começa a
partir de R$ 500.
Fazendo uma conta simples, muitos
ex-atletas chegam a disputar até
quatro partidas por fim de semana,
atuando também em outras modalidades
além do futebol, como futsal, fut7
etc. O rendimento pode superar a
casa dos R$ 40 mil mensais, valor
acima do praticado por times
profissionais que disputam divisões
inferiores do futebol paulista e
brasileiro.
Apesar de o dinheiro ser importante
e determinante para a contratação de
ex-jogadores famosos por times de
várzea, é consenso entre dirigentes,
ex-atletas e pessoas envolvidas no
esporte que a grande motivação é o
amor pelo esporte.
– Tenho o mesmo frio na barriga, a
mesma vontade e costumo falar que
minha caneta está cheia de tinta
para continuar escrevendo várias
histórias. Já joguei Libertadores,
grandes campeonatos e sempre falo
que o meu campeonato favorito é o
que estou jogando agora. Estou
realizando sonho de estar jogando
com Jailson, Corrêa, Souza, Viola –
contou Alê, de 37 anos, campeão
mundial de 2005 pelo São Paulo.
– Não é o dinheiro que atrai. A
gente viveu 20 anos de carreira
profissional, treinando todo dia e
se preparando para o jogo. E isso a
gente acaba resgatando, claro que
não temos aquele compromisso no dia
a dia, mas você acaba criando para
performar bem. Isso resgata o
profissional, mas você acaba também
se divertindo e encontrando um
ambiente muitas vezes melhor que
muito time profissional. Não é o
dinheiro – disse Corrêa, ex-jogador
com passagens por Palmeiras,
Flamengo e Atlético-MG.
– Ninguém aqui joga por dinheiro,
muitas vezes o jogador prefere, não
por necessidade, mas por jogar,
fazer o que gosta e não ter aquele
compromisso que tinha como
profissional. Muitas vezes é mais
negócio do que pegar um clube de uma
categoria inferior e você não
receber, como em muitos casos. Na
várzea é muito difícil você chegar e
ouvir de um atleta que não recebeu,
a gente paga pouco, mas paga
certinho – explicou Roni Zinkoski,
presidente do Enquadro's de
Sorocaba.
Em busca de dinheiro ou do
prolongamento da carreira no futebol
após anos como profissional, fato é
que os jogadores agora possuem um
novo mercado a ser explorado. Mais
do que isso, a várzea, o futebol
amador ou semiprofissional ressurge
sendo uma importante alternativa de
lazer e também de renda para as
pessoas apaixonadas e que buscam de
alguma forma estar inseridas no
esporte.