Na
poeira e no coração – Historia do
Terrestre – bicampeão de BH na
década de 40
istória de bicampeão da década de
1940, o Terrestre, fecha série de
reportagens do EM e mostra por que
os times de bairro já foram uma
febre na capital mineira
No início da
década de 1940,
muitos fãs de futebol até poderiam
dar de ombros para o campeonato
profissional, mas era difícil
encontrar, entre os pouco mais de
200 mil habitantes de Belo
Horizonte, quem não se interessasse
pelo resultado de duelos como
Terrestre x Brasil – conhecido como
o Fla-Flu da Lagoinha –,
Independente x Ferroviário, no
Horto; os embates entre Pitangui,
Fluminense ou Tremedal, também na
Lagoinha; Juventus x Vasco, no
Carlos Prates; além de outros clubes
populares como Matadouro, Santa
Tereza, Parque Riachuelo e Pompeia,
que lotavam os campos de terra por
onde passavam.
A popularidade do futebol amador era
tanta que os jornais da época,
muitas vezes, destacavam os scores
do campeonato do Departamento de
Futebol Amador – que passou a gerir
os times varzeanos em 1942,
substituindo a Liga Amadora, de 1933
– e relegavam a segundo plano os
jogos do profissional.
“Coube ao Terrestre o título de
campeão do initium amadorista”, por
exemplo, era o destaque do Estado de
Minas de 27/4/1943 sobre o primeiro
dos dois títulos consecutivos do
rubro-negro.
O Terrestre era conhecido como “o
clube mais querido” pela
popularidade em campo e pelos
disputados bailes dançantes na sede
social, à Rua Itapecerica, no limite
entre a Lagoinha e a Pedreira Prado
Lopes. Tanto que, no fim da década
de 1930, surgiu em seu escrete o
primeiro grande ídolo do futebol de
várzea da capital: Edward Queiróz,
conhecido como o Mestre Blatgé. Em
agosto de 1939, o extinto Folha de
Minas premiou o beque, então com 23
anos, com o montante de 3 contos de
réis e o título de “Crack absoluto
da várzea”. Em concurso promovido
pelo jornal, Blatgé recebeu 35.741
votos, superando Barbosa, do Clube
Gymnastico (21.037), e Esné, do
Santa Cruz (17.298).
Segundo o periódico, a cerimônia de
entrega do prêmio, na sede do
Terrestre, “constituiu um
acontecimento de grande realce nos
círculos amadoristas da capital”. A
eleição mostra o envolvimento da
cidade com o futebol amador: 74.076
votos em uma capital cuja população
passava pouco dos 200 mil.
Edward mudou de Juiz de Fora para a
capital na virada dos anos 1920 para
1930 trazendo uma recomendação do
Tupi ao Atlético para contratá-lo.
Como precisava conciliar o futebol
com o trabalho, não conseguiu espaço
no alvinegro nem no América. Morador
da Lagoinha, bairro operário, obteve
emprego na Mesbla – loja de
departamentos brasileira fundada em
1912, filial da francesa Mestre et
Blatgé, de onde surgiu o apelido do
craque.
SAUDADES E LEMBRANÇAS
O Terrestre resistiu
até meados da década de 1970. Do
rubro-negro resta a saudade da
comunidade, o casarão da Rua
Itapecerica – um sobrado onde hoje
funcionam bares, borracharia e uma
relojoaria – e uma das maiores
heranças do carnaval de BH: o bloco
Leão da Lagoinha, precursor da Banda
Mole. “Era uma época muito boa:
assistir aos jogos no barranco do
campo do Pitangui, dançar nos
bailes, o carnaval...”, lembra
Adélia Mendes, filha de um dos
últimos presidentes do Terrestre,
Paulo Mendes, conhecido como Paulo
Açúcar. “Eu me lembro do meu pai
subindo a Rua Itapecerica com os
filhos pequenos. Todo mundo o
tratava como ídolo. Parava e
conversava com todo mundo. Era um
gentleman”, lembra o filho Edmar
Queiróz.
Mesmo abandonado pelo
poder público e espremido, a cada
ano, pela expansão imobiliária, o
futebol amador resiste ao longo das
décadas. Depois do Terrestre, o
Santa Tereza – que contava com um
dos melhores campos da cidade, o
Estádio Benedito Valadares –
conquistou quatro títulos seguidos.
Na década de 1960 e 1970, Tremedal x
Rosário (do restaurante de mesmo
nome, na Avenida Paraná) movimentava
a cidade. A partir dos anos 1970, a
Federação Mineira de Futebol passou
a organizar a Divisão Especial do
Amador, cujos clubes, como
Mineirinho (Alto Vera Cruz),
Ferroviária (Pedreira Prado Lopes),
Portuguesa (Providência) e Pompeia,
colecionam troféus. A competição,
sempre no primeiro semestre divide
atenção com a Copa Centenário,
realizada desde 1997, no segundo
semestre, e a Copa Itatiaia,
disputada desde 1962, que começa
amanhã. E em seus campos, boa parte
de terra batida, times e comunidade
vão resistindo. Por honra e amor a
camisas que só aqueles que as
vestiram e os que as conhecem de
perto sabem do imenso esforço para
manter vivo esse sonho.
Manter vivo o sonho
O Estado
de Minas e
o Superesportes encerram
nesta sexta-feira a série Clubes da
Esquina, que desde domingo contou a
história (e algumas estórias) do
futebol amador de Belo Horizonte.
Times quase
centenários que lutam para
sobreviver e continuar construindo
um dos maiores patrimônios da
capital. Em seis dias, as
reportagens apresentaram jogadores,
ex-jogadores e diretores que, longe
do glamour, sem ajuda do poder
público e espremidos pela
especulação imobiliária, tentam
manter viva uma das principais
atrações das comunidades: a pelada
de fim de semana, disputada em campo
de terra, areia ou grama, com
torcedores aglomerados em barrancos,
bancos de tábua ou arquibancadas de
cimento.
Histórias que se
repetem nas mais de 230 equipes
amadoras em atividade e que os 4,5
mil atletas registrados pela
Federação Mineira de Futebol sentem
na pele. Uma paixão genuína que o
profissionalismo perdeu com o tempo
e que a população precisa lutar para
não acabar de vez.