"Sabe
tudo de bola o Roger
Milla!", gritava Galvăo
Bueno, celebrando o assombro
que dominava o Giuseppe Meazza
naquele 8 de julho de 1990.
Era o jogo inaugural do
Mundial da Itália e Milla,
que entrara no lugar de
Makanaky no segundo tempo,
comandava a zebra histórica:
Camarőes um, Argentina
zero.
Diego
Armando Maradona declarara
dias antes: "Quem quiser
a Copa vai ter que tirá-la de
Maradona e seus
companheiros." Mas era
Milla quem tinha a bola, e os
companheiros de Don Diego
corriam atarantados na vă
esperança de tirá-la dos pés
do número nove camaronęs.
Gabriel Humberto Calderón,
como um touro furioso,
investiu contra Milla na
altura do grande círculo.
Milla escondeu a bola com o pé
direito, arrumou o corpo como
se fosse rumo ao campo de
defesa, mas girou velozmente e
arrancou para o campo de
ataque deixando Calderón
batido. Artisticamente driblou
mais dois adversários e rolou
para Omam Biyick, que quase
marcou o segundo. Năo
precisava, os campeőes
mundiais estavam batidos. Quem
foi rever Maradona, Caniggia e
Burruchaga, viu Roger Milla.
No jogo seguinte, contra a Romęnia
de Popescu, Hagi e Lacatus, a
seleçăo de Camarőes
provou que tinha mais para
mostrar. Dois a um para os
africanos, dois gols de Milla.
No primeiro, dividiu com o
zagueiro e deslocou o goleiro
com o pé esquerdo. No
segundo, driblou um adversário
com toque rápido de pé
esquerdo, invadiu área e
chutou forte, com o pé
direito, no ângulo. O Mundial
da Itália virara o Mundial de
Milla.
Nas oitavas-de-final, um
confronto contra a escola
sul-americana. A Colômbia de
Higuita, Valderrama e Rincón
já năo era a favorita,
embora dela se esperasse muito
no início da competiçăo.
Mas quem pode com Roger Milla,
que tabela com Omam Biyick, dá
um corte seco para passar
entre Oscar Perea e Escobar
para ficar cara a cara com
Higuita e chutar de pé
esquerdo, no alto, indefensável?
Talvez pensando em dar o
troco, Higuita tentou driblar
Roger Milla na intermediária
pouco depois. Perdeu a bola e
viu o camaronęs entrar
sozinho na área para rolar a
bola para o gol vazio.
Na comemoraçăo dos gols
contra a Colômbia, como um
menino, Roger Milla correu até
a bandeirinha do escanteio. Ao
seu redor, ensaiou um samba
esquisito, conseqüęncia
de sua alegria indisfarçável.
Há tręs anos, abandonara
a seleçăo de seu país,
por se crer já velho demais.
Pareciam distantes os anos de
glória no futebol francęs.
Agora defendia o Saint Pierre,
nas Ilhas Reuniăo.
Atendeu, no entanto, um pedido
do presidente camaronęs,
Paul Biya, que clamava por sua
presença para ajudar a seleçăo
na Copa da Itália. Aos 38
anos, aceitou a convocaçăo
e agora via que valera a pena.
Milla acabara de transformar a
geografia do futebol mundial.
Fizera do até entăo simpático
e inofensivo futebol africano
uma ameaça ŕs forças
tradicionais. Pela primeira
vez na história, uma equipe
daquele continente chegava
ŕs quartas-de-final de
uma Copa do Mundo.
Sua história começara duas décadas
antes, quando foi recrutado
pelo Léopard de Douala para
jogar profissionalmente. Na
temporada seguinte, conquistou
o campeonato camaronęs,
além de alcançar as
semifinais da Copa de Camarőes.
Transfere-se para o Tonnerre
Kalara Club de Yaoundé, pelo
qual consegue mais dois títulos:
a Copa de Camarőes e a
primeira Copa dos Campeőes
da África. Aos 23 anos, é
eleito melhor jogador de seu
país. No ano seguinte, ganha
o pręmio de melhor
jogador do continente
africano, chamando a atençăo
do futebol europeu.
O Valenciennes, do norte da
França, adquire a promessa.
Duas temporadas de problemas
de relacionamento e tentativa
de mostrar o seu valor. Ao
contrário do salário milionário
que lhe fora prometido, Milla
năo recebe mais que 500 dólares
mensais, valor incompatível
com seu futebol. O
reconhecimento tampouco vem
com a transferęncia para
o Monaco, onde acaba passando
apenas um ano.
Em 1980, assina com o Bastia,
clube pelo qual finalmente
voltará a desempenhar o bom
futebol de anos atrás.
Termina a temporada com nove
gols marcados. No ano
seguinte, enfrentaria o
poderoso Saint-Etienne de
Michel Platini na final da
Copa da França. Com um gol do
rápido atacante camaronęs,
o Bastia fica com o título.
Ainda neste ano, marca 6 gols
nas Eliminatórias para a Copa
da Espanha, levando o seu país
pela primeira vez para a mais
importante competiçăo do
futebol. Na Espanha, foram tręs
empates em tręs jogos, um
deles contra a Itália, que
acabou campeă do torneio.
Dois anos depois, os Leőes
Indomáveis ficavam com o título
da Copa das Naçőes
Africanas, o que se repetiu em
88. Milla virara ídolo
nacional, mas decide que já
é hora de dizer adeus ŕ
sua seleçăo.
Dois anos antes, Milla havia
sido contratado pelo
Saint-Etienne, clube que
ajudaria, com dezenas de gols,
a voltar para a primeira divisăo.
Com 36 anos, ainda recebeu crédito
do Montpellier, ajudando também
na subida da equipe para a
divisăo principal. Ao
todo, foram mais de 150 gols
pela liga francesa.
É entăo que Milla parte
para o que seria o final de
sua carreira. Se transfere
para as Ilhas Reuniăo, no
Pacífico Oriental. Atuando
pelo Saint Pierre, ajuda o
time a conquistar o campeonato
local em 1990.
Com a seleçăo camaronesa
voltando ŕ Copa do Mundo,
Milla se vę diante de uma
inesperada convocaçăo.
Se ninguém duvidava de seu
potencial, năo seria ele
que o faria. Entrando no
decorrer das partidas, por năo
ter mais preparo para os 90
minutos, Milla se consagra
como o grande jogador da
equipe africana que encanta o
mundo.
O sonho camaronęs termina
na partida contra a
Inglaterra, em uma derrota por
3 a 2. Mas Roger Milla já
havia feito o bastante para
voltar a ser eleito o melhor
jogador africano do ano e
entrar para a história do
futebol mundial.
Como num prolongamento de um
sonho, Milla
inacreditavelmente volta na
Copa de 1994, nos Estados
Unidos. Na partida contra a Rússia,
em que Camarőes é
goleado por 6 a 1, o gol de
honra é marcado por ele, entăo
com 42 anos, tornando-se o
mais velho jogador a marcar um
gol em uma Copa do Mundo.
No final da década de 90,
Roger Milla começou a
trabalhar como embaixador
africano e foi eleito o melhor
jogador da história deste
continente. Homenagens justas
ao homem que romantizou a história
moderna do futebol.
"O futebol é um
esporte. É preciso primeiro
amá-lo, para só depois
praticá-lo"
(Roger Milla, maior
jogador africano de todos os
tempos)
"Jogar futebol năo
é uma questăo de idade,
mas de inteligęncia e
personalidade. E tudo está
muito claro dentro de minha
cabeça"
(Roger Milla, maior
jogador africano de todos os
tempos)
"O que nós, jogadores
africanos, fazemos năo é
para nós mesmos nem para
nossos países, mas para nosso
continente"
(Roger Milla, maior
jogador africano de todos os
tempos)
"Se eu fosse 20 anos
mais jovem, ganharia muito
dinheiro. Năo sei se
ganharia tanto quanto Ronaldo,
mas ganharia dele no pręmio
de melhor jogador do
mundo"
(Roger Milla, maior
jogador africano de todos os
tempos)
"Há jogadores hoje em
dia que, embora ganhem milhőes
e milhőes, nunca farăo
o que eu fiz pelo futebol,
nunca realizarăo o que eu
realizei. E isso me
basta"
(Roger Milla, maior
jogador africano de todos os
tempos, perguntado se lhe
incomodava o fato de năo
ter jogado na época atual,
quando a remuneraçăo do
atleta é bem maior)